in Observador em 25/04/25
A Cultura tem sido, frequentemente, tratada como algo secundário, como uma área supletiva que se pode desconsiderar quando emergem questões mais urgentes, como a segurança, a economia ou a guerra. A visão, simplista e imediata, de tentar cortar no orçamento da Cultura é, particularmente, evidente em tempos de crise, como os que estamos a viver.
No entanto, é sobretudo em momentos de grande tensão ou de elevada conflitualidade, como os que caracterizam o, atual, contexto geopolítico europeu e mundial, que a Cultura se manifesta como um pilar fundamental da nossa identidade e da nossa coesão. A Cultura é o cimento que edifica as sociedades. Muitas vezes, negligenciamos o seu papel de alicerce social, mas estamos, profundamente, enganados ao subestimá-la, especialmente quando a Cultura é atacada e o património cultural destruído, como tem acontecido na Ucrânia.
A destruição do património cultural não é apenas uma perda material, é um ataque à própria alma de uma nação e à identidade de um povo. É, em simultâneo, um atentado às raízes culturais da Europa. E, infelizmente, em tempos de guerra, o património cultural torna-se, com frequência, um alvo estratégico.
Locais emblemáticos para a Ucrânia e para a Cultura Europeia, como o Museu de Ivankiv, o Centro Histórico de Chernigov, O Centro Histórico e a Catedral de Odessa, o Mosteiro de Sviatohirsk, o Museu de Arte e a Biblioteca Universitária em Kharkiv, o Teatro Dramático de Mariupol, foram afetados pelos bombardeamentos e sofreram danos, tendo sido incluídos, ou encontrando-se em processo de classificação, na lista de património em risco, da UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Estes locais não são apenas edifícios ou espaços, mas símbolos da identidade e da soberania da Ucrânia. A sua destruição é uma tentativa de apagar a história e de deslegitimar a existência de um povo. A Cultura, neste sentido, não é apenas um reflexo do presente, mas também um testemunho do passado e da luta de um país para preservar a sua autonomia e a sua identidade única, que se projeta para o futuro.
É neste contexto que a Comissão Europeia se encontra a preparar a Bússola Cultural para a Europa, num tempo, particularmente, desafiante, estando a decorrer uma consulta pública das partes interessadas. Pretende-se que esta iniciativa seja mais do que uma simples resposta a desafios concretos que os profissionais da cultura enfrentam, como as condições de trabalho inadequadas e o financiamento insuficiente.
A União Europeia precisa de um quadro estratégico que traga a Cultura para o centro das políticas europeias e fortaleça o seu papel como motor da coesão territorial e da estabilidade social. O setor cultural, que representa 2% do PIB da UE e emprega 3,8% da sua força de trabalho, tem um impacto económico considerável. No entanto, é o seu valor social e político que torna a Cultura, verdadeiramente, indispensável, enquanto força promotora de uma identidade comum, dos valores e dos princípios da UE e enquanto elemento agregador face à crescente fragmentação e polarização da sociedade europeia.
Para cumprir este objetivo, a proposta para a Bússola Cultural para a Europa assenta em cinco pilares fundamentais, que visam responder aos desafios emergentes que a Cultura enfrenta. Estes pilares têm como principais objetivos reforçar a competitividade, garantir a liberdade de expressão, preservar o património, responder aos desafios da inteligência artificial e melhorar as condições de trabalho de artistas e demais trabalhadores do setor cultural. A ligação entre estes pilares e a estabilidade e a resiliência da UE é evidente, sobretudo num contexto de crescente polarização e desinformação. Salvaguardar a liberdade de expressão e reforçar a competitividade do setor cultural torna-se essencial para proteger a integridade democrática e os nossos valores, porque a guerra não se faz apenas com armas, também se combate através da informação.
A proliferação de narrativas falsas e tendenciosas, amplificadas pelas redes sociais e por intervenientes mal-intencionados, corrói a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas e no projeto europeu. Neste contexto, a educação cultural, a exposição a diferentes expressões artísticas e a promoção dos valores e da identidade europeus tornam-se cruciais para capacitar os cidadãos para interpretar e para questionar a informação que consomem. A Cultura e a Arte, nas suas múltiplas manifestações, criam espaços de reflexão e debate indispensáveis à construção de uma cidadania ativa e informada. No entanto, para que a Cultura possa desempenhar, plenamente, esta função estruturante, é necessário um compromisso sério de apoio e financiamento por parte dos Estados-Membros e da UE.
Atualmente, o programa Europa Criativa, o único instrumento financeiro inteiramente dedicado à Cultura, tem sido o elemento mais visível da política cultural europeia, mas representa apenas 0,2% do atual Quadro Financeiro Plurianual. Este programa visa apoiar artistas, organizações culturais e projetos transnacionais, promovendo a diversidade cultural e facilitando o acesso às indústrias criativas.
No entanto, existem 20 programas europeus que, também, incluem componentes culturais, como o Erasmus+, que, sendo amplamente reconhecido pelo seu impacto na educação e juventude, promove, igualmente, a mobilidade de artistas e projetos de cooperação cultural; o Horizonte Europa, que apoia a digitalização e a preservação do património cultural bem como incentiva a inovação nas indústrias criativas; o Fundo de Coesão, o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) e o Programa Interreg EU, que contribuem ativamente para a preservação do património cultural e para a alavancagem do setor nas regiões e nos municípios. Não sendo fácil contabilizar, devido à dispersão e fragmentação dos instrumentos financeiros, a totalidade dos fundos disponíveis, não tenho dúvida que, atualmente, no seu conjunto, a UE já dedica mais de 1% do seu orçamento para a área da Cultura.
No entanto, a abordagem europeia ao financiamento da Cultura continua fragmentada e, na minha opinião, insuficiente. Embora a responsabilidade e a competência primária, nesta matéria, pertença aos Estados-Membros, essa realidade não deve ser encarada como um entrave à ação a nível europeu. Pelo princípio da subsidiariedade, a UE desempenha competências na coordenação de esforços dos Estados-Membros, no incentivo à cooperação transnacional e no reforço do papel da Cultura para a resiliência da Europa.
O primeiro passo para uma estratégia cultural europeia mais eficaz e de maior proximidade ao setor foi dado com o início do processo de consulta pública, por parte da Comissão Europeia. Esta iniciativa visa garantir que as futuras diretrizes refletem, de forma concreta, os desafios e as aspirações do setor. Para isso, é essencial que todas as partes interessadas, artistas, empresas, autoridades públicas, associações e organizações Culturais e cidadãos participem ativamente, dando os seus contributos através do preenchimento do formulário disponível no site da Comissão Europeia, até 13 de maio: https://ec.europa.eu/info/law/better-regulation/have-your-say/initiatives/14609-A-Culture-Compass-for-Europe_en.
O envolvimento e a participação de todos será determinante para assegurar que a estratégia europeia que se está a delinear seja inclusiva, sustentável e representativa.
A promessa do Comissário Europeu para a Justiça Intergeracional, Juventude, Cultura e Desporto, Glenn Micallef, de apresentar esta estratégia até ao final do ano, revela o reconhecimento da necessidade de avançar rapidamente e de forma mais coordenada na área cultural. Enquanto responsável pela Cultura na Comissão Europeia, o Comissário desempenha um papel central para garantir que a política cultural europeia seja consistente e eficaz, alinhando a ação europeia com os desafios contemporâneos e promovendo a coordenação a nível europeu, nacional e local.
No entanto, para que a Bússola Cultural para a Europa tenha efeitos tangíveis, é essencial que não se fique apenas pelas boas intenções. A falta de alinhamento entre os múltiplos instrumentos financeiros e legislativos tem sido um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento do setor. Sem um reforço substancial do financiamento e uma maior coerência entre os mecanismos de apoio, a Cultura continuará a ser tratada como uma área acessória, vulnerável às crises económicas e políticas.
Mais do que uma ferramenta de orientação, a Bússola Cultural para a Europa deve redefinir o papel da Cultura na política europeia, garantindo um compromisso estruturado que permita aos setores Culturais e criativos prosperar. A capacidade da UE para enfrentar os desafios contemporâneos, desde a transição digital até ao combate à desinformação, para promover a sua resiliência e para alavancar a competitividade e a inovação depende, diretamente, do robustecimento da Cultura enquanto elemento basilar do processo de integração europeia. Sem medidas concretas, que assegurem a sua efetividade e materialização no terreno, esta iniciativa corre o risco de ser mais uma promessa vaga, sem impacto real na coesão e na identidade europeias.
Assumir este compromisso de forma séria representa um verdadeiro ponto de viragem, consolidando a Cultura como um pilar essencial da identidade europeia e reforçando o seu papel na construção de uma sociedade mais coesa, inclusiva, inovadora e resiliente.