in Observador em 22/03/25
A Europa vive um momento histórico de redefinição do seu papel geopolítico e da sua responsabilidade enquanto garante da paz, da segurança e da liberdade, no continente. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia expôs as vulnerabilidades profundas na arquitetura da segurança europeia, bem como precipitou uma transformação fundamental na nossa abordagem à defesa coletiva. Atualmente, após décadas de subinvestimento e fragmentação, perante uma ameaça que não é esporádica, mas estrutural, a União Europeia (UE), finalmente, reconheceu que a sua autonomia estratégica não é apenas uma miragem, mas uma necessidade inadiável numa ordem geopolítica internacional que se encontra em redefinição.
A Comissão Europeia e a Alta Representante para a Política Externa deram, esta semana, um passo em frente com a apresentação do ambicioso plano ReArm Europe e do Livro Branco para a Defesa Europeia até 2030. Estas iniciativas, materializadas com o regulamento SAFE para facilitar empréstimos aos Estados-Membros, bem como com a ativação coordenada da cláusula de escape nacional no âmbito do Pacto de Estabilidade e Crescimento, em conjunto com a criação do Programa Europeu para a Indústria de Defesa (EDIP), representam um quadro político e regulamentar robusto para que a Europa possa, finalmente, assumir a sua própria segurança. Contudo, confrontamo-nos, agora, com um desafio significativo: como financiar esta transformação imperativa sem comprometer os outros pilares fundamentais do projeto europeu?
O diagnóstico é claro e partilhado: a base industrial e tecnológica de defesa europeia encontra-se fragmentada, com redundâncias e ineficiências que limitam a nossa capacidade de resposta. A aquisição de equipamentos militares é, frequentemente, conduzida numa base estritamente nacional, resultando em duplicações desnecessárias, custos elevados e interoperabilidade limitada. As vulnerabilidades da indústria de defesa europeia tornaram-se, particularmente, evidentes na guerra da Ucrânia, onde a capacidade de produção de munições, sistemas antiaéreos e outras tecnologias defensivas se revelou insuficiente, face à intensidade do conflito. A dependência de fornecedores externos, nomeadamente dos Estados Unidos, foi, igualmente, exposta de forma preocupante, colocando em questão a capacidade da Europa para defender os seus interesses estratégicos, com autonomia.
A resposta da Comissão Europeia é coerente ao apoiar financeiramente os Estados-Membros para a produção e compra acelerada de munições, drones, sistemas antiaéreos, capacidades cibernéticas, para o investimento em infraestruturas críticas, para fomentar a interoperabilidade e a aquisição conjunta e para integrar a indústria de defesa ucraniana como parte do esforço coletivo. Ao mesmo tempo, esta é uma resposta ambiciosa, pois pretende mobilizar até 800 mil milhões de euros, para o reforço das capacidades de defesa europeias. Este valor será alcançado através de uma combinação de empréstimos ao abrigo do mecanismo SAFE (até 150 mil milhões), flexibilidades nacionais no âmbito do Pacto de Estabilidade e Crescimento (até 650 mil milhões) e financiamento do Banco Europeu de Investimento.
No entanto, um elemento crucial deste plano, o financiamento direto a partir do orçamento da UE à Industria de Defesa Europeia, depara-se com um obstáculo significativo: o atual Quadro Financeiro Plurianual (QFP 2021-2027) não foi concebido para acomodar um aumento tão substancial da despesa conjunta em defesa. O orçamento da UE para 2026, simplesmente, não tem margem nem flexibilidade para absorver estes custos adicionais sem cortes profundos noutras áreas prioritárias.
Seria, manifestamente, contraproducente financiar o reforço da defesa europeia à custa de cortes nos programas essenciais nas áreas da coesão territorial e social, da transição verde, da inovação ou da política agrícola comum. Estes programas não são luxos dispensáveis, mas pilares fundamentais do projeto europeu, contribuindo para a prosperidade, a sustentabilidade, a estabilidade e coesão que, em última análise, são também elementos basilares para a segurança europeia. Cortar nestes programas para financiar a defesa seria sacrificar o futuro a longo prazo da Europa em nome da segurança a curto prazo — uma falsa dicotomia que devemos rejeitar. Desta forma, chegámos a um ponto negocial onde o consenso político sobre a necessidade de agir está consolidado, mas a verdadeira dificuldade reside em alcançar um consenso sobre como financiar este esforço.
O Conselho Europeu, nas suas conclusões de 20 de março de 2025, salientou, de forma inequívoca, a urgência de reforçar as capacidades de defesa europeias. Seguindo as conclusões anteriores, de 6 de março, e “à luz do Livro Branco sobre o Futuro da Defesa Europeia de 19 de março de 2025”, o Conselho Europeu apelou a “uma aceleração do trabalho em todas as vertentes para aumentar decisivamente a prontidão de defesa da Europa nos próximos cinco anos”. O Conselho convidou, ainda, as instituições a “avançar rapidamente com as recentes propostas da Comissão” e apelou a que “a implementação das ações identificadas nas suas conclusões de 6 de março de 2025 no domínio das capacidades comece com urgência, bem como a continuação do trabalho sobre as opções de financiamento relevantes”. Estas conclusões sublinham o consenso político, ao mais alto nível, sobre a necessidade de agir rapidamente, mas deixam em aberto a questão essencial: como financiar este esforço?
Face a este dilema, a solução mais viável, justa e eficaz é a criação de um novo instrumento de dívida comum europeia, especificamente destinado ao financiamento da indústria de defesa europeia, ainda durante o atual QFP. À semelhança do que foi feito com o NextGenerationEU durante a pandemia, este instrumento permitiria à União mobilizar os recursos necessários, sem comprometer outros programas essenciais ou sobrecarregar, excessivamente, os orçamentos nacionais. Tal como a recuperação económica após a COVID-19 exigiu um esforço coletivo sem precedentes, também a reconstrução da segurança europeia requer a mobilização conjunta de recursos, num espírito de verdadeira solidariedade orçamental entre os Estados-Membros e uma abordagem de choque no apoio às empresas europeias de defesa.
A emissão de dívida comum permitiria financiar os investimentos urgentes no setor da defesa sem pressionar os orçamentos nacionais, garantindo, simultaneamente, escala, previsibilidade e equidade. A proposta da Comissão Europeia para ativar a cláusula de escape nacional é bem-vinda, mas insuficiente: os Estados-Membros não estão em condições iguais para financiar, autonomamente, o esforço de defesa. Sem um instrumento comum, arriscamo-nos a aprofundar as assimetrias e a fragmentar o mercado interno. Além disso, uma abordagem comum permitiria condicionar o financiamento ao cumprimento de critérios de aquisição conjunta, envolvimento das PME, equilíbrio geográfico e reforço da competitividade do setor industrial europeu. Tal como no caso do plano SAFE, o apoio a projetos de interesse europeu comum deve privilegiar a produção europeia, a redução de dependências externas e a interoperabilidade.
O objetivo final, tal como definido no Livro Branco para a Defesa, é claro: até 2030, a Europa deve ser capaz de garantir a sua própria segurança, em complementaridade com a NATO, mas com verdadeira autonomia estratégica. A guerra na Ucrânia confrontou-nos com uma realidade incontornável: a paz e a segurança na Europa não podem ser tomadas como garantidas. A UE tem, agora, a oportunidade e a responsabilidade de transformar este momento de crise num catalisador para uma integração mais profunda tornando-se num garante de segurança e não um mero recetor.
O futuro da defesa europeia e o futuro da UE dependem das decisões que tomamos hoje. Que este seja o momento em que a União Europeia demonstra, uma vez mais, que está à altura da sua História.