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Defesa: Os desafios para além dos 2%   

in Observador em 30/1/25

Durante a sua visita a Portugal, Mark Rutte deixou uma mensagem clara: “A meta dos 2% não será suficiente para enfrentar os desafios do futuro”. Esta declaração ganha particular relevância depois de Portugal se comprometer a atingir os 2% do PIB em despesas de defesa até 2029. Com a guerra na Ucrânia a entrar no seu terceiro ano, o paradigma já não é se devemos reforçar a nossa defesa, mas como fazê-lo de forma inteligente e sustentável. A questão que se coloca é inevitável: que novo patamar de investimento será necessário e como deverá Portugal posicionar-se face a este desafio?

Investir melhor, produzir mais rápido, comprar europeu

A experiência da guerra na Ucrânia demonstrou que qualquer percentagem de investimento em defesa pode ser insuficiente se não houver uma base industrial robusta, capaz de sustentar um esforço militar prolongado. Depender de fornecedores externos para equipamento militar crítico é uma vulnerabilidade inaceitável. A Europa precisa de desenvolver a sua própria capacidade industrial de defesa, não por protecionismo, mas por necessidade estratégica. A Europa precisa de investir mais e de forma inteligente—canalizando esses investimentos para uma indústria europeia de defesa forte, com cadeias de valor integradas, e com capacidade logistica para responder rapidamente às necessidades operacionais.

Para tal, é preciso fazer renascer as nossas indústrias de defesa, e criar um verdadeiro mercado único de defesa europeu. E aqui, está a principal vantagem económica deste esforço: a defesa pode ser um motor de crescimento industrial, tecnológico e de inovação e não apenas uma despesa inevitável. A criação de um verdadeiro mercado único de defesa europeu permitirá ganhos de escala, redução de custos e maior autonomia estratégica, garantindo que os fundos investidos pelos Estados-membros beneficiam diretamente a economia europeia, assim como, devem ser catalisadores do investimento privado.

O aumento da percentagem do PIB aplicado em defesa não é, nem pode ser visto, apenas como uma despesa. Se bem aplicado, vai, sem dúvida, alavancar o crescimento económico de muitas regiões. A nova meta dos X% (com X maior que 2), ao invés de uma despesa, deverá ser um investimento estratégico na modernização industrial do país e da Europa.

Portugal e o cluster europeu de defesa

Portugal, apesar da sua dimensão, tem oportunidades a explorar neste novo mercado único. A participação em projetos industriais europeus de defesa pode trazer benefícios económicos significativos, desde a criação de empregos qualificados até à transferência de tecnologia e inovação para a sociedade civil. Portugal deve integrar-se nos programas de defesa europeus que promovam não só a aquisição conjunta de equipamento, mas também a partilha de capacidades industriais e tecnológicas.

O desafio, contudo, é garantir que os investimentos são bem direcionados. Sem um plano estratégico, gastar mais apenas conduz a desperdícios e a uma maior dependência externa. O país pode afirmar-se como um parceiro relevante em setores como as novas tecnologias, criando clusters em áreas como a cibersegurança, a construção naval, a construção e manutenção de aeronaves, o fardamento e a produção de equipamentos ligeiros, inserindo-se nos clusters de defesa europeus e reforçando a sua competitividade industrial.

O fator humano

A tecnologia militar sem recursos humanos adequados é inútil. O desafio atual é tanto numérico como qualitativo. Por um lado, a grande maioria das Forças Armadas dos Estados-membros enfrentam um problema grave de atração e retenção de capital humano. Por outro, a complexidade do combate moderno exige capacidades que vão muito além da formação básica (recruta tradicional). As Forças Armadas do século XXI já não se podem basear exclusivamente nas tradicionais dimensões terrestres, aéreas e marítimas: precisam de peritos em redes, analistas de dados, operadores de armamento autónomo e estrategas capazes de coordenar operações híbridas noutras dimensões como o espaço e o ciberespaço.

Desde o fim da Guerra Fria, a Europa seguiu um caminho de desmobilização progressiva das Forças Armadas dos Estados-membros, sob a ilusão de uma paz permanente. Hoje, essa realidade inverteu-se de forma dramática. A guerra na Ucrânia demonstrou que conflitos de alta intensidade são uma possibilidade real, e que manter “exércitos” reduzidos pode ser um erro estratégico de consequências devastadoras.

Para além do equilíbrio orçamental

O aumento significativo do investimento em defesa levanta questões legítimas sobre sustentabilidade orçamental. O aumento do investimento em defesa não deve implicar o sacrifício do Modelo Social Europeu — pelo contrário, pode e deve reforçá-lo. A experiência de outros países, alguns europeus, mostra que o investimento inteligente em defesa gera retornos significativos para a economia, ao criar empregos qualificados, assim como, efeitos positivos de “contágio” noutros setores económicos.

No entanto, a solução não passa por sobrecarregar os orçamentos nacionais, mas sim por uma abordagem europeia coordenada.

A criação de Eurobonds para defesa, bem como um papel mais ativo do Banco Europeu de Investimento (BEI) no financiamento da indústria de defesa, permitirá distribuir o esforço financeiro no tempo e por todos os Estados-membros, sem sobrecarregar os orçamentos nacionais. Esta abordagem evitará que o reforço da segurança e defesa seja feito à custa de cortes noutras áreas críticas e garantirá que a UE investe coletivamente no seu próprio futuro. Além disso, o próximo Quadro Financeiro Plurianual (QFP) deve refletir esta prioridade, destinando fundos específicos para a inovação e modernização da indústria de defesa europeia. O envolvimento do setor privado e dos mercados financeiros também deve ser explorado, através de incentivos ao investimento em tecnologias de defesa e segurança.

Defender a Liberdade é Defender o Modelo Social Europeu

A História ensina-nos uma verdade incontornável: não existem direitos sociais sem liberdade, nem democracia sem capacidade desta para se defender. Os sistemas de saúde universais, a educação pública, a proteção social – todos estes pilares do nosso modelo de sociedade dependem da nossa capacidade de proteger os valores democráticos que os suportam.

O verdadeiro desafio para Portugal não está apenas em atingir os tais X% do PIB, mas em garantir que este investimento fortaleça simultaneamente a nossa segurança e o nosso tecido social e económico. Cada euro encaminhado para a segurança e defesa é um investimento na preservação da nossa liberdade, dos nossos valores democráticos e, consequentemente, da nossa capacidade para manter e desenvolver o Modelo Social Europeu que tanto prezamos.

Porque só sociedades livres podem ser verdadeiramente justas e solidárias, defender esta liberdade não é uma opção — é uma necessidade imperiosa para garantir o nosso futuro.

 

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