in Observador em 03/07/25
A Europa acordou, em Haia, com a certeza que o mundo mudou irrevogavelmente. A cimeira da NATO foi um momento de clarificação histórica sobre o lugar da Europa no tabuleiro geopolítico global. Os 32 aliados não se reuniram apenas para concordarem em aumentar a percentagem de investimento do PIB em defesa. Reuniram-se para redefinir os alicerces da segurança transatlântica, para a próxima década.
O contexto não poderia ser mais claro: a Rússia invadiu a Ucrânia há quase três anos, o Médio Oriente está em ebulição e a China expande a sua influência militar no Pacífico. Simultaneamente, os Estados Unidos da América (EUA), sob a segunda presidência de Donald Trump, exigem uma redistribuição fundamental dos custos e responsabilidades, dentro da Aliança Atlântica. Esta confluência de circunstâncias criou o momento perfeito para uma transformação que era, há muito, inevitável.
A Aliança Atlântica fez o que tinha de ser feito. A decisão de apontar para um objetivo de investimento de 5% do PIB até 2035, com revisões em 2029, reflete o somatório de 3,5% em equipamento militar direto e de 1,5% em investimentos relacionados (infraestrutura, cibersegurança, prontidão). É, sobretudo, um sinal claro a Moscovo e a todos os que testam os limites da ordem internacional: o tempo da ambiguidade acabou. Os aliados reconhecem a necessidade de reforçar as suas capacidades, bem como definem metas, estratégias e compromissos concretos.
Este aumento de investimento, a nível prático, significa a passagem de um modelo de defesa assente numa presença simbólica e histórica e numa projeção limitada, para uma abordagem centrada em capacidades reais, interoperabilidade e prontidão operacional. Significa investir na reposição de provisões de munições, no reforço de defesas aéreas, na modernização dos sistemas de comando e controlo e na capacidade de mobilização rápida de tropas e de meios. É um investimento tangível que se traduz em mais treinos conjuntos, maior presença nos flancos vulneráveis da Aliança e maior capacidade de dissuasão perante ameaças reais.
No plano operacional, a cimeira foi conduzida sob a batuta da diplomacia moderna “à la Trump”. Longe dos estereótipos de confronto diplomáticos, o que presenciámos foi uma demonstração sofisticada de como gerir personalidades complexas no cenário internacional. Trump chegou à cimeira com exigências claras e saiu com a sensação de vitória que necessitava para justificar o compromisso norte-americano com a NATO. Mark Rutte, o homem que durante anos foi conhecido pela sua abordagem frugal às finanças públicas holandesas, revelou-se, surpreendentemente, pragmático, quando confrontado com as exigências da realpolitik internacional. A sua estratégia, de manter a cimeira focada, concisa e livre de complexidades desnecessárias, foi um exercício de diplomacia aplicada que merece reconhecimento, numa altura onde a Europa, e sobretudo a Ucrânia, não se podia dar o luxo de ver o presidente norte-americano a abandonar a Cimeira.
A mensagem revelada de Rutte a Trump: “Donald, você levou-nos a um momento realmente importante para a América, Europa e para o mundo. A Europa vai pagar à grande, como deve, e será a sua vitória”, pode ter soado como bajulação extrema aos ouvidos menos atentos, mas foi, na verdade, um exemplo de inteligência e de pragmatismo diplomático. Na política internacional, egos bem geridos podem ser mais eficazes do que tratados complexos ou resoluções de dezenas de parágrafos. Esta abordagem permitiu que Trump saísse de Haia declarando que a NATO “não é um roubo” e reafirmando o compromisso dos EUA com o Artigo 5.º do Tratado de Washington. Para um presidente que chegou ao poder questionando o valor da Aliança, esta é uma vitória diplomática significativa, para a Europa. O preço, aceitar metas de investimento mais ambiciosas, é um preço que a Europa, honestamente, deveria estar disposta a pagar, independentemente, da pressão americana.
A crítica fácil seria acusar os europeus de cedência excessiva. Uma análise mais ponderada reconhece que esta foi uma transação estratégica inteligente: garantir o compromisso dos EUA com a segurança europeia em troca de um investimento que a própria invasão da Ucrânia pela Rússia já exigia. Trump pode ter fornecido o ímpeto político necessário e forçado, especificamente, a meta dos 5%, mas a lógica subjacente é sólida e de louvar.
Um argumento forte, em apoio a esta estratégia, foi o resultado da decisão de Pedro Sánchez. em recusar, publicamente, a meta dos 5%, que originou uma tensão diplomática com Trump a ameaçar aumentar as tarifas comerciais, apesar de, possivelmente, se ter esquecido que os acordos comerciais são negociados, para toda a União Europeia (UE), com a Comissão Europeia. Ironicamente, a exceção espanhola pode ter sido útil para demonstrar a outros aliados que a flexibilidade total não é uma opção viável. O isolamento diplomático de Madrid, em Haia, enviou uma mensagem clara: a solidariedade tem custos e a sua ausência também.
Entre os líderes europeus, existe plena consciência que o acordo alcançado não é um fim em si mesmo. Pelo contrário, mesmo com metas temporais mais favoráveis, existe uma urgência concreta em acelerar a execução dos planos e compromissos estabelecidos. A chave está em estruturar este investimento de forma inteligente. A UE não pode, simplesmente, comprar equipamento militar estrangeiro e considerar que cumpriu os seus objetivos. Deve aproveitar esta oportunidade para desenvolver capacidades próprias, criar empregos qualificados e solidificar, de uma vez, a base industrial de defesa europeia.
Para Portugal, a Cimeira de Haia representa, simultaneamente, um desafio e uma oportunidade histórica. Como membro fundador da NATO, Portugal sempre teve um estatuto especial na Aliança, pela sua posição geoestratégica única. Os acontecimentos recentes, na Base das Lajes, apenas sublinharam esta relevância: quando a base açoriana serviu de ponto de apoio para operações norte-americanas, no Médio Oriente, ficou claro que Portugal continua a ser um ator indispensável na arquitetura de segurança transatlântica.
A posição adotada por Luís Montenegro, em Haia, foi exemplar em termos de diplomacia nacional. Ao comprometer-se com o objetivo de investimento de 3,5% do PIB, em defesa, até 2035, mas mantendo flexibilidade na trajetória, até 2029, o Primeiro-Ministro conseguiu alinhar Portugal com o consenso aliado sem criar pressões orçamentais insustentáveis a curto prazo. Esta abordagem reconhece tanto as limitações fiscais do país como a necessidade de demonstrar credibilidade no cumprimento dos compromissos internacionais. Para Portugal, cumprir com as metas de despesas militares representa um investimento adicional, que deverá crescer, aproximadamente, 445 milhões de euros a cada ano, considerando as projeções económicas atuais.
Mais importante, ainda, é a oportunidade que esta meta representa para a modernização das Forças Armadas Portuguesas. Portugal tem necessidades reais em termos de equipamento militar e de infraestruturas de defesa. O investimento adicional pode, finalmente, permitir a aquisição de capacidades que há muito são necessárias, desde sistemas de defesa aérea até equipamentos de comunicações avançados.
O desafio agora é transformar compromissos em capacidades, palavras em resultados concretos. Portugal tem uma janela de oportunidade única para modernizar as suas Forças Armadas, desenvolver a sua base industrial de defesa e reforçar a sua relevância estratégica na Aliança Atlântica. Isto requer visão política de longo prazo, coordenação interministerial eficaz e capacidade de explicar aos portugueses a necessidade e os benefícios deste investimento. Não se trata, apenas, de despender mais dinheiro em defesa; trata-se de investir na segurança, prosperidade e relevância internacional de Portugal.
A Cimeira provou que, mesmo numa era de incerteza geopolítica e liderança norte-americana imprevisível, a diplomacia inteligente e o compromisso estratégico podem produzir resultados positivos. O futuro da NATO será determinado não pelas palavras de Haia, mas pelas ações tomadas nas capitais europeias, nos próximos anos. Só assim podemos garantir que a NATO continuará a desempenhar o seu papel na arquitetura de defesa europeia. É tempo de assumirmos o nosso papel na defesa coletiva do continente.