in Observador em 06/04/25
Num tempo marcado por conflitos nas fronteiras europeias, catástrofes climáticas de intensidade crescente, ciberataques sofisticados, crime internacional organizado, tráfico de migrantes, de seres humanos e de droga e campanhas de desinformação orquestradas por potências hostis, a União Europeia (UE) demonstra, finalmente, sinais de despertar para uma realidade incontornável: a segurança, no século XXI, exige uma abordagem, verdadeiramente, integrada.
A Estratégia da União de Preparação (Preparedness Union Strategy), a nova Estratégia Europeia de Segurança Interna (ProtectEU) e o anunciado Escudo Europeu da Democracia vêm preencher lacunas estruturais na resposta da UE às crises e complementar de forma decisiva o Livro Branco da Defesa Europeia (RearmEU). Juntas, estas iniciativas constituem um quadro abrangente para uma UE segura, protegida e resiliente dando início a um novo paradigma: a segurança não é apenas militar, policial ou de socorro; é também civil, digital, climática, sanitária e, na maior parte dos casos, híbrida. Tem de ser encarada como uma responsabilidade transversal a todas as políticas públicas.
O ponto de partida é claro: as respostas a crises têm sido, essencialmente, reativas, compartimentadas e, por vezes, com níveis de coordenação pouco eficazes. Até agora, as respostas às crises, na União Europeia, sejam elas de saúde pública, desastres naturais ou provocadas pelo homem, revelam, em muitos casos, falhas de diferentes níveis: falta de coordenação entre os diferentes níveis governação, respostas desarticuladas entre setores civis e militares ou mecanismos de proteção civil fragmentados. A Estratégia da União de Preparação faz um diagnóstico frontal e propõe um modelo de ação que assenta em quatro grandes eixos: antecipação, resposta coordenada, recuperação rápida e investimento estruturado. Sob estes pilares, definem-se sete objetivos estratégicos e trinta ações decisivas. O foco está, igualmente, na proteção das chamadas funções sociais vitais — como energia, água, comunicações, saúde e mobilidade —, garantindo a sua continuidade mesmo em cenários extremos.
O propósito desta estratégia é ambicioso: instituir uma cultura de planeamento multissetorial e multinível, alicerçada numa governação integrada do risco. A sua força e relevância reside na sua transversalidade. Reconhece que as ameaças futuras serão, cada vez mais, multifacetadas: uma pandemia pode gerar uma crise económica e social, tal como uma perturbação climática pode ter consequências geopolíticas. Por isso, a Estratégia da União de Preparação propõe uma nova cultura de cooperação civil-militar e de parcerias público-privadas para identificar vulnerabilidades, proteger infraestruturas críticas e construir uma rede de resiliência europeia. Incentiva-se, ainda, a articulação entre diferentes níveis de governação — europeu, nacional, regional e local — promovendo uma lógica de “todos os riscos, todas as políticas”.
Esta visão é, particularmente, relevante para os Estados-Membros onde persiste a tendência de compartimentar responsabilidades entre “quintas” institucionais: a proteção civil para um lado, a defesa para outro, os serviços de emergência e socorro e as autoridades locais e regionais cada um no seu “cantinho”. Esta fragmentação reduz a eficácia da resposta em situações complexas. Queremos caminhar para uma abordagem verdadeiramente integrada, tomando como inspiração alguns países nórdicos, onde o conceito de “sociedade total” implica um envolvimento coordenado de todos os setores — público, privado e comunitário — na preparação e resposta a crises. Esta estratégia foi produzida tendo como ponto de partida o relatório de Sauli Niinisto, ex-presidente da Finlândia, que transferiu a experiencia adquirida, com sucesso, nesta parte da europa. Preparação é sinónimo de educação e participação cívicas, treino e comunicação transparente. Todos os Estados-Membros tem de caminhar neste sentido e Portugal não será exceção. Aprender com este modelo, começando por consciencializar a população da sua responsabilidade enquanto ator principal da resiliência, passando pela formação em ambiente escolar e culminando na boa prática de ter, em cada casa, um kit de sobrevivência, com capacidade para manter a família durante 72 horas, são alguns dos principais objetivos desta estratégia europeia de proteção civil.
Complementarmente, a Estratégia Europeia de Segurança Interna introduz uma mudança de mentalidade na forma como a UE encara as ameaças à segurança interna. Reconhece que o crime organizado, o terrorismo, os ataques cibernéticos e as campanhas de desinformação fazem parte de uma guerra híbrida que visa minar a coesão social, sabotar infraestruturas e deslegitimar as instituições democráticas europeias. Propõe, por isso, uma cultura de segurança partilhada, onde todos os atores — do cidadão ao decisor político, do setor público ao privado — têm um papel a desempenhar. Uma sociedade segura é também uma sociedade informada e resiliente.
A Estratégia Europeia de Segurança Interna assenta em três pilares: reforço da governação da segurança interna (com melhor partilha de informação e cooperação entre Estados-Membros); integração da segurança em todas as políticas europeias (desde o digital ao alargamento); promoção de uma resiliência contra a manipulação, a radicalização e a interferência externa. Preconiza a criação de mecanismos de alerta precoce, partilha de inteligência estratégica, proteção das infraestruturas críticas e combate à criminalidade organizada transnacional. Em conjunto com a Estratégia da União de Preparação e o Livro Branco da Defesa Europeia, a Estratégia Europeia de Segurança Interna permite articular melhor as dimensões externa e interna da segurança europeia e construir uma lógica coerente de proteção e segurança total do espaço europeu.
A grande novidade política destas três iniciativas é a forma como se complementam: uma estratégia de defesa que reforça a capacidade militar e industrial europeia; uma estratégia de preparação e reação a crises que garante a continuidade das funções sociais vitais em contexto de crise; e uma estratégia de segurança interna que protege as democracias europeias contra as ameaças, algumas invisíveis, mas reais. Pela primeira vez, a UE está a construir um verdadeiro ecossistema de segurança, abrangente e multidimensional, que reconhece a natureza sistémica das ameaças e propõe respostas sustentadas, coordenadas e adaptadas. No entanto, a soberania dos Estados-Membros quanto à segurança e defesa e a competência para atuarem dentro das suas fronteiras, nunca é posta em causa. Estas estratégias visam reforçar e coordenar as capacidades já existentes nos 27 Estados-Membros, mas, acima de tudo pretendem potenciar as sinergias e os benefícios de atuação conjunta no espaço europeu.
Estamos, talvez pela primeira vez, perante uma verdadeira doutrina europeia de segurança total. Cabe agora aos Estados-Membros, e a Portugal em particular, assumirem a responsabilidade de aplicar estas estratégias, de forma integrada, coordenada e com visão de futuro. Proteger a sociedade europeia é, atualmente, um imperativo civilizacional e um teste à maturidade política do projeto europeu. A segurança não é apenas uma prioridade do presente, é o alicerce da liberdade, da estabilidade e do progresso europeu nas próximas décadas.