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União Europeia: a cultura na era da inteligência artificial

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in Observador em 13/06/25

A inteligência artificial (IA) está a redesenhar, passo a passo, a forma como concebemos, partilhamos e experienciamos a Cultura. No ponto de encontro entre a tecnologia e a expressão artística, as indústrias culturais e criativas (ICC) deparam-se com um vasto leque de oportunidades quase ilimitadas, mas, também, com desafios que exigem uma reflexão atenta e uma regulação equilibrada.

Entre os episódios mais insólitos de colaboração entre inteligência artificial e criação artística está a recuperação da voz de John Lennon a partir de uma velha cassete, permitindo que os Beatles completassem, com décadas de intervalo, a canção Now and Then. A ideia de uma banda se poder reunir com um membro ausente e que a IA ocupe o lugar deixado em aberto pode parecer improvável, mas foi, precisamente, isso que aconteceu. Este resultado foi tão convincente que mereceu reconhecimento ao mais alto nível, com a atribuição de um Grammy. Este exemplo, que liga uma gravação inacabada, dos anos 70, a técnicas avançadas de processamento digital, mostra como a IA está a ganhar um lugar nos processos de criação artística. Já não serve apenas para executar tarefas, mas, igualmente, para abrir novas possibilidades e dar continuidade a ideias inacabadas.

Contudo, o avanço acelerado da IA e a crescente acessibilidade destas ferramentas colocam desafios que exigem atenção. À medida que a IA generativa se insere nos processos criativos, multiplicam-se as preocupações quanto ao uso indevido de conteúdos, desde manipulações visuais e sonoras até à criação, sem autorização, de obras que replicam estilos, vozes ou elementos protegidos por direitos. A elevada capacidade de imitação, aliada à opacidade dos dados utilizados no “treino da maquina”, levanta questões complexas sobre autoria, originalidade e apropriação. Num ecossistema criativo cada vez mais mediado por sistemas automatizados, coloca-se uma questão essencial: como garantir a proteção da propriedade intelectual e da integridade artística num contexto onde as linhas entre o real e o fabricado se tornam cada vez mais difusas?

Face a este desafio, a União Europeia (UE) tem vindo a adotar um conjunto de iniciativas legislativas com impacto direto no setor criativo e digital. A Diretiva sobre os Direitos de Autor (Directive on Copyright in the Digital Single Market– DCDSM) reforça o controlo dos criadores sobre o uso automatizado das suas obras, enquanto o Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act – DSA) e o Regulamento dos Mercados Digitais (Digital Market Act – DMA) regulam, entre outros aspetos, a moderação de conteúdos e o poder das grandes plataformas digitais. No setor audiovisual, a Diretiva dos Serviços de Comunicação Social Audiovisual (Audiovisual Media Services Directive – AVMSD) estabelece princípios de responsabilidade editorial e promoção da diversidade cultural, cada vez mais relevantes face ao uso crescente de algoritmos de recomendação. A estas medidas soma-se o Regulamento Europeu para a Liberdade dos Meios de Comunicação Social (European Media Freedom Act – EMFA) que introduz salvaguardas adicionais para a independência editorial e o combate à desinformação. Por fim, o Regulamento Europeu sobre a Inteligência Artificial (Artificial Inteligence Act – AI Act) define regras específicas para os sistemas de IA, com destaque para a transparência e rastreabilidade do seu funcionamento.

Apesar dos avanços regulatórios, persistem obstáculos significativos no que toca à proteção dos direitos de autor no contexto da inteligência artificial. Um dos maiores desafios é identificar, eficazmente, os casos em que os conteúdos gerados por IA resultam de uma utilização não autorizada de obras protegidas. Esta tarefa é, particularmente, difícil quando não existem mecanismos claros de verificação ou rastreio e quando os dados utilizados para treinar os sistemas não são públicos, nem, suficientemente, documentados. Acresce que algumas criações podem apresentar semelhanças com obras existentes sem que isso decorra de uma cópia direta, mas sim do modo como os algoritmos combinam padrões e fragmentos durante o treino. Nestas circunstâncias, distinguir entre influência legítima, coincidência e infração real torna-se, altamente, complexo. A indefinição legal sobre o que constitui uma utilização abusiva, aliada à ausência de critérios harmonizados de avaliação, contribui para uma paisagem jurídica pouco clara, onde a atribuição de responsabilidade é, frequentemente, ambígua e difícil de aplicar.

A estas dificuldades jurídicas somam-se entraves técnicos que limitam a eficácia das soluções existentes. Muitos sistemas de IA operam como verdadeiras “caixas negras”, com sistemas, altamente, sofisticados, cujos processos internos são opacos até para os próprios programadores. Esta falta de transparência torna, praticamente, impossível perceber como a informação é tratada, que dados foram utilizados no “treino da maquina” e de que forma contribuem para os resultados finais. Sem acesso a explicações compreensíveis e verificáveis, torna-se, extremamente, difícil auditar o funcionamento destes sistemas ou responsabilizar os seus criadores. Além disso, a ausência de normas técnicas comuns e a disparidade de interpretações entre os diferentes Estados-Membros da UE dificultam uma resposta coordenada, criando um ambiente fragmentado que fragiliza a proteção dos criadores e compromete a previsibilidade jurídica.

Neste contexto, o desafio imediato passa por transformar intenções políticas em medidas concretas que assegurem uma utilização eficaz e equilibrada da IA. A Comissão Europeia deu recentemente um passo nesse sentido com a Apply AI Strategy, cuja fase de consulta pública terminou a 4 de junho de 2025, procurando definir prioridades e soluções para setores como as indústrias culturais e criativas. Em paralelo, e no seguimento do novo Regulamento Europeu sobre a IA, foi, igualmente, concluída, a 22 de maio, uma consulta pública destinada a preparar orientações para fornecedores de sistemas de IA de finalidade geral (GPAI – The Global Partnership on Artifical Intelligence). Estas orientações, cuja publicação está prevista para as próximas semanas, deverão estabelecer regras claras sobre a utilização de conteúdos protegidos por direitos de autor e exigir a divulgação de um resumo dos dados utilizados no treino dos sistemas, promovendo assim maior transparência, rastreabilidade e responsabilização.

Ainda assim, a simples existência de normas não resolve, por si só, os desafios colocados pela inteligência artificial no domínio cultural. Mesmo com um quadro jurídico em expansão (DSA, DMA, EMFA, AI Act, DCDSM e a AVMSD) continuam a verificar-se dificuldades concretas na aplicação e na interpretação das regras. A coexistência de múltiplos instrumentos legais, cada um com objetivos e ritmos próprios, pode gerar sobreposições, zonas cinzentas ou dificuldades de articulação, colocando à prova a clareza e a coesão do quadro regulatório europeu.

É, por isso, fundamental que a ambição regulatória da Europa seja acompanhada por um esforço de articulação, clareza e proporcionalidade. Regular bem não significa regular mais, mas sim garantir que as normas existentes funcionam em conjunto, são inteligíveis e aplicáveis na prática. A eficácia normativa não se mede apenas pelo número de diplomas aprovados, mas sim pela sua capacidade de criar um ecossistema em que a inovação tecnológica e a criatividade artística possam crescer lado a lado.

Para que este equilíbrio seja duradouro, é, igualmente, essencial assegurar a diversidade do ecossistema criativo europeu, garantindo regras proporcionais e adaptáveis, capazes de responder às realidades distintas, tanto das grandes plataformas, como das pequenas estruturas independentes. Uma regulação eficaz começa por reconhecer a diversidade do setor cultural e criativo, ajustando-se às múltiplas realidades e necessidades dos seus intervenientes.

Neste cenário diverso e em transformação, a IA introduz uma camada adicional de complexidade, obrigando-nos a repensar os conceitos tradicionais de autoria e originalidade. No entanto, essa disrupção tecnológica não deve justificar o abandono dos princípios que sustentam a liberdade criativa. Pelo contrário, é precisamente nesses princípios que deve assentar uma regulação capaz de acolher a inovação sem comprometer os valores fundamentais. A resposta europeia exige, por isso, soluções ponderadas, informadas e, genuinamente, participativas. Estimular o diálogo entre os diferentes agentes culturais e promover o acesso a conhecimento técnico e jurídico às pequenas e médias organizações culturais são passos decisivos para assegurar uma transição justa, partilhada e geradora de novas possibilidades criativas.

Em última análise, o futuro da cultura não será definido apenas pela evolução tecnológica, mas pela visão política com que a acompanhamos. Se for bem enquadrada, a IA pode ser uma aliada poderosa da criação, da diversidade e da inovação. Mais do que escolher entre progresso ou proteção, o verdadeiro desafio está em garantir que ambos caminham juntos. A Europa tem a oportunidade e a responsabilidade de mostrar que é possível regular com inteligência, sem abdicar da liberdade e da criatividade que alimentam a arte.

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